sexta-feira, 21 de dezembro de 2007

O japones frio e timido ou doidao – combate ao estereotipo de uma sociedade

E sabido que o “wa”, cuja traducao mais adequada e harmonia, definida no dicionario Huaiss como “1 combinacao de elementos diferentes e individualizados, mas ligados por uma relacao de pertinencia, que produz uma sensacao agradavel e de prazer; 2 ausencia de conflitos; paz, concordia; 3 conformidade entre coisas ou pessoas; concordancia, acordo” e uma das pedras fundamentais da sociedade japonesa.

Olha que coisa bonita: uma sociedade que evita o conflito, busca a paz e conformidade entre as pessoas.

Lindo na frieza do dicionario, mas o resultado final e um pais campeao mundial de suicidio. Parece contraditorio? O que uma coisa tem a ver com a outra? E mais ou menos esta a pergunta - “porque os japoneses se matam tanto?” – que eu me fazia mas nao encontrava uma resposta convincente.

Inserido na sociedade japonesa, passei a entender melhor porque o povo japones e o que e e tambem passei a interpretar melhor as informacoes e sinais que eu ja tinha sobre esse pais.

E como resultado, passei a me entender melhor, compreender melhor as minhas atitudes e encontrei respostas para algumas questoes para as quais nao encontrava solucao. Foi quase um nirvana pra mim, que cresci entendendo so mais ou menos essa coisa complicada que sou eu e tambem a sociedade japonesa.

Pois passemos a minha resposta a minha pergunta.

O japones vive num circulo social bastante opressor pela busca obsessiva da tal harmonia. E a mesma historia do remedio que, se aplicado em doses excessivas, resulta em efeitos colaterais terriveis e perversos.

O japones e bombardeado por pressoes vindo por todos os lados da sociedade, que tenta a todo o custo ajustar as pessoas a forma do bolo social. Esta la cravado desde ha muito tempo que voce deve estudar, deve tirar boas notas, deve ir a uma faculdade, trabalhar em uma boa empresa, casar, ter filhos, sempre buscar a paz e o consenso social. E ponto. Nada alem disso. E desde japonesinho o japones e preparado e forcado a enfrentar neste ciclo.

Nao ha escapatoria, sair deste sistema resultara em sofrimento e uma grande pressao por parte do “seken”, que ira condenar qualquer tentativa de violacao do fragil equilibrio que cria a harmonia do meio. “Seken”, que e uma palavra de dificil traducao, vem a ser o conjunto de individuos formado pelo entregador de jornal, os vizinhos, a mae dos coleguinhas do seu filho, o atendente da vendinha, dos professores, aquele colegas de firma que so pegam o elevador com voce, enfim, aquela micro-sociedade formada pelo “conhecido” e que cerca o dia-a-dia do cidadao, a sociedade imediata, aquele grupo de pessoas que faz parte do cotidiano do individuo.

Tudo bem se a coisa parasse por ai. Mas as consequencias de suas escolhas podera se estender a sua familia, uma vez que o individuo nada mais e do que o resultado do que a familia fez com ele. Logo, a familia acaba tendo a mesma carga de responsabilidade sobre quaisquer erros ou comportamentos inadequados em sociedade de determinada pessoa.

O resultado de todo esse emaranhado de relacoes sociais e uma pressao tremenda nao somente por parte do “seken”, mas tambem da familia - que teme com razao entrar no estado de quase-limbo social em virtude de determinadas atitudes de um de seus membros – para que o homem japones se enquadre no esquema posto, no ideal de sociedade harmoniosa.

Toda esta pressao social que existe sobre o individuo e a familia acaba por explicar, por exemplo, a atitude de algumas familias que preferem esconder um filho deficiente fisico ou mental nas dependencias de sua casa a enfrentar o preconceito; a mulher que decide nao por os pes na rua ate morrer pela vergonha em nao ter arranjado marido; ou os adolescentes que sobrevivem no proprio quarto e jamais tem contato social.

E facil perceber, portanto, que o Japao esta mergulhado em um regime integral e intenso de auto-vigilia. A todo o momento o japones esta sendo julgado, forcado, moldado, pressionado, criticado e analisado por outrem e qualquer deslize, uma atitude mal planejada ou executada significa eliminacao do jogo. Acho que agora entendo porque nao me empolguei tanto com 1984 (mentira, na verdade li ha muito tempo e so nao lembro qual foi a sensacao ao terminar de le-lo).

E se voce nao consegue se adaptar a este ambiente, voce e o problema. Nao ha nada de errado com uma sociedade que prega a harmonia. As regras ja estao ai, escritas ha muito tempo e cabe a voce segui-las. E se por acaso voce esta sofrendo porque as regras sao muito duras, nao esmoereca, levante a cabeca, deixe de ser fraco, engula o choro e volte ao jogo. O que e que os vizinhos vao pensar de nos? E a lavagem cerebral que todos sofrem desde o nascimento. E e tambem por viver neste ambiente que japones fica perdido se nao houver planejamento na vida diaria. Porque toda a sua vida ja foi planejada, la atras e com frieza matematica, desde a epoca em que voce estava no saco do seu pai. Nao ha espaco para emocoes mais fortes, improvisos e falta de organizacao.

Neste ambiente opressor, nao ha com quem desabafar, nao ha como mostrar fraqueza, nao ha para quem correr. Isso explica tambem a historia que ouvi, de que terapia e algo quase inexistente neste pais. E carinho tambem - mas isso eu nao precisava ouvir, (nao) presencio todos os dias.

Toda essa confluencia de fatores, a internalizacao de todas as angustias, medos e emocoes reduz em ultima instancia o espaco para o exercicio da individualidade e da criatividade, sufocando o homem.

Na verdade espaco para a criatividade e exercicio de individualidade ate ha, desde que isso signifique nao incomodar os outros. E dai e que surgem os escritores japoneses, os desenhistas de mangas, os malucos que ficam dancando sozinhos em Yoyogi Park, os cosplayers que ficam fantasiando um mundo diferente, a moda maluca do Japao. Se voce nao for capaz de criar o seu proprio mundo – desde que, obvio, nao signifque conflito com o mundo real - para de alguma forma descarregar e despressurizar a si proprio, nao ha outra saida que nao puxar a cordinha e pedir para sair do trem. Ou saltar dele se nao parar.

Nao e facil ser japones. Viver na sociedade japonesa muito menos. Nao tenho a sensacao agradavel e de prazer que a harmonia deveria proporcionar.

Nao quero que meu pai ache que sou um infeliz. Muito pelo contrario, so tenho a agradece-lo pelo fato dele ter percebido o quao perigoso e este mundo e decidido se mudar ao Brasil praticamente com uma mao na frente e outra atras, deixando para tras a familia e amigos. Serei eternamente grato pela decisao de quase tres decadas.

Mas nao posso negar que identifico em mim algumas influencias desta sociedade tao bela e tao fera.

A harmonia em sociedade tem um preco: individuos fortes que respeitam as regras e (auto)eliminacao daqueles que nao estao adaptados ao meio-ambiente. So confirma que somos seres vivos. Nem racionais nem irracionais.

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